segunda-feira, 13 de junho de 2011

A Carta de Pero Vaz de Caminha


Deixando de lado o pseudo conteúdo lecionado nas escolas, a história do verdadeiro descobrimento do Brasil é recheada de suposições, lendas e aventuras, que vão desde a negociação da Corte Portuguesa com os Templários - onde a proteção a eles seria dada em troca das cartas marítimas – até relatos da presença de Vikings e Romanos em nosso solo nacional. Mas ficaremos apenas com a famosa história da armada de Cabral, que passou por aqui para fincar a bandeira portuguesa antes de seguir para Calicute na Índia, tendo como escrivão Pero Vaz de Caminha (Pero Uaaz de Camjnha).

Eu já havia lido a carta algumas vezes, mas agora resolvi conhecer um pouco mais sobre ela e saber onde se encontra atualmente.
A carta que Pero Vaz de Caminha enviou ao Rei D. Manuel sobre a chegada em Vera Cruz (assim era chamado o Brasil de início) foi escrita na atual Porto Seguro entre os dias 26 de abril e 2 de maio de 1500. Neste 2 de maio a esquadra de Cabral seguiu para a Índia e o navio de Gaspar Lemos foi despachado para retornar à Lisboa onde a carta chegou a seu destinatário. O Rei D. Manuel entregou a carta à secretaria de estado como documento secreto, pois não queria que a notícia sobre o descobrimento chegasse aos espanhóis. Alguns anos mais tarde o documento foi enviado para o arquivo nacional na Torre do Tombo em Lisboa e lá permaneceu esquecido por séculos.

Uma cópia da Carta do “Achamento” foi feita em 1773 pelo então diretor do arquivo José Seabra da Silva. Supõe-se que através de ligações familiares com o Brasil, e de sua transferência ao Rio de Janeiro em 1808 juntamente com a família real portuguesa, o texto tenha chegado por aqui. A cópia foi encontrada no arquivo da Marinha Real do Rio de Janeiro pelo padre Manuel Aires do Casal que a imprimiu em 1817, tornando-se pública pela primeira vez.

O documento em si é composto por 14 folhas, com o texto estendendo-se por 27 páginas com uma caligrafia elegante, onde o português do início do século XVI se distancia muito do que conhecemos hoje em dia. Atualmente o documento se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa. Mais abaixo coloco a cópia de todas as páginas com a transcrição contemporânea, mas quem quiser pode ter acesso ao documento original da Torre do Tombo em http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4185836 e ver a comparação entre a transcrição contemporânea e paleográfica em http://antt.dgarq.gov.pt/files/2010/11/Carta-de-P%C3%AAro-Vaz-de-Caminha-transcri%C3%A7%C3%A3o.pdf.

Mesmo conhecendo algumas das atrocidades que foram impostas aos índios pelos portugueses neste primeiro contato – sendo algumas inconscientes e outras totalmente brutais – podemos dizer que o texto, levando em conta seu objetivo, é rico e envolvente. Caminha utiliza-se de um estilo marcado pela objetividade, visto ser o que convém a quem escreve um relato, principamente ao rei. Mas mesmo assim Caminha não se comporta como um mero burocrata. Sua linguagem nunca é seca ou mesquinha, mas muitas vezes é bem-humorada. A riqueza de detalhes e as impressões do autor dão ao relato uma grande dimensão humana. Na minha opinião todo brasileiro deveria conhecer o conteúdo desta carta.

Página 1

SENHOR,
posto que o capitão-mor desta vossa
frota e assim os outros capitães
escrevam a Vossa Alteza a nova do
achamento desta vossa terra nova, que
se ora nesta navegação achou, não
deixarei também de dar disso minha
conta a Vossa Alteza, assim como eu
melhor puder, ainda que para o bem
contar e falar o saiba pior que todos
fazer. Mas tome Vossa Alteza minha
ignorância por boa vontade, a qual, bem
certo, creia que por afremosentar nem
afear haja aqui de pôr mais do que
aquilo que vi e me pareceu. Da
marinhagem e singraduras do caminho
não darei aqui conta a Vossa Alteza,
porque o não saberei fazer e os pilotos
devem ter esse cuidado. E, portanto,
Senhor, do que hei-de falar começo e
digo que a partida de Belém, como
Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9
de Março. E sábado, 14 do dito mês,
entre as 8 e 9 horas, nos achámos entre
as Canárias, mais perto da Grã Canária.
E ali andámos todo aquele dia, em
calma, à vista delas, obra de três ou
quatro léguas.
E domingo, 22 do dito mês, às 10 horas,
pouco mais ou menos, houvemos vista
das ilhas do Cabo Verde, isto é, da ilha
de S. Nicolau, segundo dito de Pêro
Escolar, piloto.
E a noute seguinte, à segunda-feira,
quando lhe amanheceu, se perdeu da
frota Vasco d'Ataíde, com a sua nau,
sem aí haver tempo forte nem contrairo
para poder ser. Fez o capitão suas
diligências para o achar, a umas e a
outras partes, e não apareceu mais.
[Terça-feira, 21 de Abril de 1500. Sinais
de terra] E assim seguimos nosso
caminho por este mar, de longo, até
terça-feira d'oitavas de Páscoa, que
foram 21 dias d'Abril, que topámos
alguns sinais de terra, sendo da dita ilha,
segundo os pilotos diziam, obra de 660
ou 670 léguas, os quais eram muita
quantidade d'ervas compridas, a que os
mareantes chamam botelho e assim
outras, a que também chamam rabo
d'asno.
[Quarta-feira, 22 de Abril] E à quartafeira
seguinte, pela ma- //

Página 2

-nhã, topámos aves, a que chamam furabuchos. 
E neste dia, a horas de véspera,
houvemos vista de terra, isto é,
primeiramente d'um grande monte, mui
alto e redondo, e d'outras serras mais
baixas a sul dele e de terra chã com
grandes arvoredos, ao qual monte alto o
capitão pôs nome o Monte Pascoal e à
terra a Terra de Vera Cruz.
[Quinta-feira, 23 de Abril] Mandou lançar
o prumo, acharam 25 braças, e, ao solposto,
obra de 6 léguas de terra,
surgimos âncoras em 19 braças;
ancoragem limpa. Ali ficámos toda
aquela noute. E à quinta-feira, pela
manhã, fizemos vela e seguimos direitos
à terra e os navios pequenos diante, indo
por 17, 16, 15, 14, 13, 12, 10 e 9 braças
até meia légua de terra, onde todos
lançámos âncoras em direito da boca
dum rio. E chegaríamos a esta
ancoragem às 10 horas, pouco mais ou
menos.
E dali houvemos vista d'homens, que
andavam pela praia, de 7 ou 8, segundo
os navios pequenos disseram, por
chegarem primeiro. Ali lançámos os
batéis e esquifes fora e vieram logo
todos os capitães das naus a esta nau
do capitão-mor e ali falaram. E o capitão
mandou no batel, em terra, Nicolau
Coelho, para ver aquele rio. E, tanto que
ele começou para lá d'ir, acudiram pela
praia homens, quando dous, quando
três, de maneira que, quando o batel
chegou à boca do rio, eram ali 18 ou 20
homens, pardos, todos nus, sem
nenhuma cousa que lhes cobrisse suas
vergonhas. Traziam arcos nas mãos e
suas setas. Vinham todos rijos para o
batel e Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pusessem os arcos; e eles os puseram.
Ali não poude deles haver fala nem
entendimento que aproveitasse, por o
mar quebrar na costa. Somente deu-lhes
um barrete vermelho e uma carapuça de
linho, que levava na cabeça, e um
sombreiro preto. E um deles lhe deu um

Página 3

// sombreiro de penas d'aves, compridas,
com uma copazinha pequena de penas
vermelhas e pardas, como de papagaio.
E outro lhe deu um ramal grande de
continhas brancas, miúdas, que querem
parecer d'aljaveira, as quais peças creio
que o capitão manda a Vossa Alteza. E
com isto se volveu às naus por ser tarde
e não poder deles haver mais fala, por
azo do mar.
[Sexta-feira, 24 de Abril] A noute
seguinte ventou tanto sueste com
chuvaceiros, que fez caçar as naus e
especialmente a capitana. E à sexta,
pela manhã, às 8 horas, pouco mais ou
menos, por conselho dos pilotos,
mandou o capitão levantar âncoras e
fazer vela. E fomos de longo da costa,
com os batéis e esquifes amarrados pela
popa, contra o norte, para ver se
achávamos alguma abrigada e bom
pouso, onde ficássemos para tomar
água e lenha, não por nos já mingar,
mas por nos acertarmos aqui.
E quando fizemos vela seriam já na praia
assentados junto com o rio obra de 60
ou 70 homens, que se juntaram ali
poucos e poucos. Fomos de longo, e
mandou o capitão aos navios pequenos
que fossem mais chegados à terra e
que, se achassem pouco seguro para as
naus, que amainassem.
E, sendo nós pela costa, obra de 10
léguas donde nos levantámos, acharam
os ditos navios pequenos um arrecife
com um porto dentro, muito bom e muito
seguro, com uma mui larga entrada. E
meteram-se dente e amainaram. E as
naus arribaram sobre eles. E um pouco
ante sol-posto amainaram obra d'uma
légua do arrecife e ancoraram-se em 11
braças.
E sendo Afonso Lopes, nosso piloto, em
um daqueles navios pequenos por
mandado do capitão, por ser homem
vivo e destro para isso, meteu-se logo no
esquife a sondar o porto dentro. E tomou
em uma almadia dous daqueles homens
da terra, mancebos e de bons corpos. E
um deles trazia um arco e 6 ou 7 setas. //

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// E na praia andavam muitos com seus
arcos e setas e não lhes aproveitaram.
Trouve-os logo, já de noute, ao capitão,
onde foram recebidos com muito prazer
e festa.
A feição deles é serem pardos, maneira
d'avermelhados, de bons rostos e bons
narizes, bem feitos. Andam nus, nem
nenhuma cobertura, nem estimam
nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas
vergonhas. E estão acerca disso com
tanta inocência como têm em mostrar o
rosto. Traziam ambos os beiços de baixo
furados e metido por eles um osso
branco de comprimento duma mão
travessa e de grossura dum fuso
d'algodão e agudo na ponta como
furador. Metem-no pela parte de dentro
do beiço e o que lhe fica entre o beiço e
os dentes é feito como roque de xadrez;
e em tal maneira o trazem ali encaixado,
que lhes não dá paixão nem lhes estorva
a fala, nem comer, nem beber. Os
cabelos seus são corredios e andavam
tosquiados de tosquia alta mais que de
sobre-pente, de boa grandura e rapados
até por cima das orelhas. E um deles
trazia por baixo da solapa, de fonte a
fonte para detrás, uma maneira de
cabeleira de penas d'ave amarela, que
seria de comprimento dum coto, mui
basta e mui çarrada que lhe cobria o
toutuço e as orelhas, a qual andava
pegada nos cabelos, pena e pena, com
uma confeição branda como cera e não
no era; de maneira que andava a
cabeleira mui redonda e mui basta e mui
igual, que não fazia míngua mais
lavagem para a levantar.
O capitão, quando eles vieram, estava
assentado em uma cadeira e uma
alcatifa aos pés por estrado, e bem
vestido, com um colar d'ouro muito
grande ao pescoço. E Sancho de Toar e
Simão de Miranda e Nicolau Coelho e
Aires Correa e nós outros, que aqui na
nau com ele imos, assentados no chão //

Página 5

// por essa alcatifa. Acenderam tochas e
entraram e não fizeram nenhuma
menção de cortesia nem de falar ao
capitão nem a ninguém. Um deles,
porém, pôs olho no colar do capitão e
começou d'acenar com a mão para a
terra e depois para o colar, como que
nos dizia que havia em terra ouro. E
também viu um castiçal de prata e assim
mesmo acenava para a terra e então
para o castiçal, como que havia também
prata. Mostraram-lhes um papagaio
pardo, que aqui o capitão traz, tomaramno
logo na mão e acenaram para a terra,
como que os havia aí. Mostraram-lhes
um carneiro, não fizeram dele menção.
Mostraram-lhes uma galinha, quase
haviam medo dela e não lhe queriam pôr
a mão e despois a tomaram como
espantados.
Deram-lhes ali de comer pão e pescado
cozido, confeitos, fartéis, mel e figos
passados; não quiseram comer daquilo
quase nada. E alguma cousa, se a
provavam, lançavam-na logo fora.
Trouveram-lhes vinho por uma taça, mal
lhe puseram a boca e não gostaram dele
nada nem o quiseram mais. Trouveramlhes
água por uma albarrada; tomou
cada um deles um bocado dela e não
beberam; somente lavaram as bocas e
lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosairo,
brancas; acenou que lhas dessem e
folgou muito com elas e lançou-as ao
pescoço e despois tirou-as e embrulhouas
no braço; e acenava para a terra e
então para as contas e para o colar do
capitão, como que dariam ouro por
aquilo. Isto tomávamos nós assim por o
desejarmos; mas, se ele queria dizer que
levaria as contas e mais o colar, isto não
queríamos nós entender, porque lhos
não havíamos de dar. E despois tornou
as contas a quem lhas deu. E então
estiraram-se assim de costas na alcatifa,
a dormir, sem ter nenhuma maneira de
cobrirem suas vergonhas, as quais não
eram fanadas e as cabeleiras delas bem
rapadas e feitas. O capitão mandou pôr
à cabeça de cada um deles um coxim e
o da cabeleira procurava assaz por a
não quebrar. E lançaram-lhes um manto
em cima e eles consentiram e ficaram e
dormiram. //

Página 6

// [Sábado, 25 de Abril] Ao sábado, pela
manhã, mandou o capitão fazer vela e
fomos demandar a entrada, a qual era
mui larga e alta de seis, sete braças. E
entraram todas as naus dentro e
ancoraram-se em cinco, seis braças, a
qual ancoragem dentro é tão grande e
tão fremosa e tão segura que podem
jazer dentro nela mais de 200 navios e
naus.
E tanto que as naus foram pousadas e
ancoradas, vieram os capitães todos a
esta nau do capitão-mor. E daqui
mandou o capitão Nicolau Coelho e
Bertolameu Diis que fossem em terra e
levassem aqueles dous homens e os
deixassem ir com seu arco e setas, a
cada um dos quais mandou dar uma
camisa nova e uma carapuça vermelha e
um rosairo de contas brancas d'osso,
que eles levavam nos braços, e um
cascavel e uma campainha. E mandou
com eles para ficar lá um mancebo
degradado, criado de D. João Telo, a
que chamam Afonso Ribeiro, para andar
lá com eles e saber de seu viver e
maneira; e a mim mandou que fosse
com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha direitos à praia.
Ali acudiram logo obra de 200 homens,
todos nus, e com arcos e setas nas
mãos. Aqueles que nós levávamos
acenaram-lhes que se afastassem e
pusessem os arcos e eles os puseram e
não se afastavam muito. E, mal tinham
posto os arcos, então saíram os que nós
levávamos e o mancebo degradado com
eles, os quais, assim como saíram, não
pararam mais, nem esperava um por
outro senão a quem mais correria. E
passaram um rio, que por aí corre,
d'água doce, de muita água, que lhes
dava pela braga; e outros muitos com
eles. E foram assim correndo além do rio
entre umas moutas de palmas, onde
estavam outros, e ali pararam.
E, naquilo, foi o degradado com um
homem que, logo ao sair do batel, o
agasalhou e levou-o até lá. E logo o
tornaram a nós. E com ele vieram os
outros que nós levámos, os quais
vinham já nus e sem carapuças. E então
se começaram de chegar muitos. //

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// E entravam pela beira do mar para os
batéis até que mais não podiam. E
traziam cabaços d'água e tomavam
alguns barris que nós levávamos e
enchiam-nos d'água e traziam-nos aos
batéis. Não que eles de todo chegassem
a bordo do batel, mas, junto com ele,
lançavam-nos da mão e nós tomávamolos.
E pediam que lhes dessem alguma
cousa. Levava Nicolau Coelho cascavéis
e manilhas e a uns dava um cascavel e a
outros uma manilha, de maneira que,
com aquela encarna, quase nos queriam
dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e
setas por sombreiros e carapuças de
linho e por qualquer cousa que lhes
homem queria dar. Dali se partiram os
outros dous mancebos, que não os
vimos mais.
Andavam ali muitos deles ou quase a
maior parte que todos traziam aqueles
bicos d'osso nos beiços. E alguns, que
andavam sem eles, traziam os beiços
furados e nos buracos traziam uns
espelhos de pau que pareciam espelhos
de borracha. E alguns deles traziam três
daqueles bicos, a saber: um na metade e
os dous nos cabos. E andavam aí outros
quartejados de cores, isto é: deles a
metade da sua própria cor e a metade de
tintura negra, maneira d'azulada, e
outros quartejados d'escaques.
Ali andavam entre eles três ou quatro
moças, bem moças e bem gentis, com
cabelos muito pretos, compridos, pelas
espáduas; e suas vergonhas tão altas e
tão çarradinhas e tão limpas das
cabeleiras que de as nós muito bem
olharmos não tínhamos nenhuma
vergonha.
Ali, por então, não houve mais fala nem
entendimento com eles por a berberia
deles ser tamanha que se não entendia
nem ouvia ninguém.
Acenámos-lhes que se fossem e assim o
fizeram e passaram-se além do rio. E
saíram três ou quatro homens nossos
dos batéis e encheram não sei quantos
barris d'água, que nós levávamos. E
tornámos-nos às naus. //

Página 8

// E, em nós assim vindo, acenaram-nos
que tornássemos e tornámos. E eles
mandaram o degradado e não quiseram
que ficasse lá com eles, o qual levava
uma bacia pequena e duas ou três
carapuças vermelhas para dar lá ao
senhor, se o aí houvesse. Não curaram
de lhe tomar nada e assim o mandaram
com tudo. E então Bertolameu Diis o fez
outra vez tornar, que lhes desse aquilo.
E ele tornou e deu aquilo em vista de
nós àquele que o da primeira agasalhou;
e então veio e trouvemo-lo. Este que o
agasalhou era já de dias e andava todo,
por louçainha, cheio de penas, pegadas
pelo corpo, que parecia assetado como
S. Sebastião. Outros traziam carapuças
de penas amarelas e outros de
vermelhas e outros de verdes. E uma
daquelas moças era toda tinta, de fundo
a cima, daquela tintura, a qual, certo, era
tão bem feita e tão redonda e sua
vergonha, que ela não tinha, tão
graciosa, que a muitas mulheres de
nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera
vergonha, por não terem a sua como ela.
Nenhum deles não era fanado, mas
todos assim como nós. E com isto nos
tornámos e eles foram-se.
À tarde saiu o capitão-mor em seu batel
com todos nós outros e com os outros
capitães das naus em seus batéis a
folgar pela baía, a carão da praia, mas
ninguém saiu em terra por o capitão não
querer, sem embargo de ninguém nela
estar. Somente saiu ele com todos em
um ilhéu grande, que na baía está, que
de baixa-mar fica mui vazio, mas é de
todas partes cercado d'água, que não
pode ninguém ir a ele sem barco ou a
nado. Ali folgou ele e todos nós outros
bem uma hora e meia. E pescaram, aí
andando marinheiros com um
chinchorro, e mataram pescado miúdo
não muito. E então volvemo-nos às naus
já bem noute. //

Página 9

// [Domingo, 26 de Abril] Ao domingo de
Pascoela, pela manhã, determinou o
capitão d'ir ouvir missa e pregação
naquele ilhéu. E mandou a todos os
capitães que se corregessem nos batéis
e fossem com ele; e assim foi feito.
Mandou naquele ilhéu armar um
esperável e dentro nele alevantar altar
muito bem corregido e ali com todos nós
outros fez dizer missa, a qual disse o
padre frei Anrique em voz entoada e
oficiada com aquela mesma voz pelos
outros padres e sacerdotes que ali todos
eram, a qual missa, segundo meu
parecer, foi ouvida por todos com muito
prazer e devoção. Ali era com o capitão
a bandeira de Cristo, com que saiu de
Belém, a qual esteve sempre alta, à
parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e
pôs-se em uma cadeira alta e nós todos
lançados por essa areia. E pregou uma
solene e proveitosa pregação da história
do Evangelho. E, em fim dela, tratou de
nossa vinda e do achamento desta terra,
conformando-se com o sinal da cruz, sob
cuja obediência vimos, a qual veio muito
a propósito e fez muita devoção.
Enquanto estivemos à missa e à
pregação, seriam na praia outra tanta
gente, pouco mais ou menos como os
d'ontem, com seus arcos e setas, os
quais andavam folgando e olhando-nos,
e assentaram-se.
E, despois d'acabada a missa,
assentados nós à pregação,
alevantaram-se muitos deles e tangeram
corno ou buzina e começaram a saltar e
dançar um pedaço. E alguns deles se
metiam em almadias, duas ou três, que
aí tinham, as quais não são feitas como
as que eu já vi; somente são três traves,
atadas juntas. E ali se metiam quatro ou
cinco ou esses que queriam, não se
afastando quase nada da terra senão
quanto podiam tomar pé.
Acabada a pregação, moveu //

Página 10

// o capitão e todos para os batéis, com
nossa bandeira alta; e embarcámos e
fomos assim todos contra terra para
passarmos ao longo por onde eles
estavam, indo Bertolameu Diis em seu
esquife, por mandado do capitão, diante,
com um pau duma almadia, que lhes o
mar levara, para lho dar, e nós todos,
obra de tiro de pedra, trás ele.
Como eles viram o esquife de
Bertolameu Diis, chegaram-se logo todos
à água, metendo-se nela até onde mais
podiam. Acenaram-lhes que pusessem
os arcos e muitos deles os iam logo pôr
em terra e outros os não punham.
Andava aí um que falava muito aos
outros que se afastassem, mas não já
que m'a mim parecesse que lhe tinham
acatamento nem medo. Este, que os
assim andava afastando, trazia seu arco
e setas e andava tinto de tintura
vermelha pelos peitos e espáduas e
pelos quadris, coxas e pernas até baixo;
e os vazios com a barriga e estômago
eram da sua própria cor. E a tintura era
assim vermelha que a água lha não
comia nem desfazia; antes, quando saía
da água, era mais vermelho.
Saiu um homem do esquife de
Bertolameu Diis. E andava entre eles
sem eles entenderem nada nele quanto
a para lhe fazerem mal, senão quanto
lhe davam cabaços d'água. E acenavam
aos do esquife que saíssem em terra.
Com isto se volveu Bertolameu Diis ao
capitão e viemo-nos às naus a comer,
tangendo trombetas e gaitas, sem lhes
dar mais opressão. E eles tornaram-se a
assentar na praia e assim por então
ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e
pregação, espraia muito a água e
descobre muita areia e muito cascalho.
Foram alguns, e nós aí estando, buscar
marisco e não no acharam. E acharam
alguns camarões grossos e curtos, entre//

Página 11

// os quais vinha um muito grande
camarão e muito grosso, que em
nenhum tempo o vi tamanho. Também
acharam cascas de bergões e
d'amêijoas, mas não toparam com
nenhuma peça inteira.
E, tanto que comemos, vieram logo
todos os capitães a esta nau, por
mandado do capitão-mor, com os quais
se ele apartou e eu na companhia. E
perguntou assim a todos se nos parecia
ser bem mandar a nova do achamento
desta terra a Vossa Alteza pelo navio
dos mantimentos, para a melhor mandar
descobrir e saber dela mais do que
agora nós podíamos saber, por irmos de
nossa viagem. E, entre muitas falas que
no caso se fizeram, foi por todos ou a
maior parte dito que seria muito bem. E
nisto concluíram. E, tanto que a
conclusão foi tomada, perguntou mais se
seria bom tomar aqui por força um par
destes homens para os mandar a Vossa
Alteza e deixar aqui por eles outros dous
destes degradados. A isto acordaram
que não era necessário tomar por força
homens, porque geral costume era dos
que assim levavam por força para
alguma parte dizerem que há aí tudo o
que lhes perguntam, e que melhor e
muito melhor informação da terra dariam
dous homens destes degradados que
aqui deixassem do que eles dariam, se
os levassem, por ser gente que ninguém
entende; nem eles tão cedo
aprenderiam, a falar para o saberem tão
bem dizer que muito melhor o estoutros
não digam, quando cá Vossa Alteza
mandar. E que, portanto, não curassem
aqui de, por força, tomar ninguém nem
fazer escândalo, para os de todo mais
amansar e apacificar, senão somente
deixar aqui os dous degradados, quando
daqui partíssemos. E assim, por melhor
parecer a todos, ficou determinado. //

Página 12

// Acabado isto, disse o capitão que
fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia
bem o rio quejando era e também para
folgarmos. Fomos todos nos batéis em
terra, armados, e a bandeira connosco.
Eles andavam ali na praia, à boca do rio,
onde nós íamos. E, antes que
chegássemos, do ensino que dantes
tinham, puseram todos os arcos e
acenavam que saíssemos. E, tanto que
os batéis puseram as proas em terra,
passaram-se logo todos além do rio, o
qual não é mais ancho que um jogo de
mancal. E, tanto que desembarcámos,
alguns dos nossos passaram logo o rio e
foram ente eles. E alguns aguardavam e
outros se afastavam, mas era a cousa de
maneira que todos andavam misturados.
Eles davam desses arcos com suas
setas por sombreiros e carapuças de
linho e por qualquer cousa que lhes
davam.
Passaram além tantos dos nossos e
andavam assim misturados com eles,
que eles se esquivavam e afastavam-se
e iam-se deles para cima, onde outros
estavam. E então o capitão fez-se tomar
ao colo de dous homens e passou o rio e
fez tornar todos.
A gente que ali era não seria mais
càquela que soía. E, tanto que o capitão
fez tornar todos, vieram alguns deles a
ele, não por o conhecerem por senhor,
cá me parece que não entendem nem
tomavam disso conhecimento, mas
porque a gente nossa passava já para
aquém do rio.
Ali falavam e traziam muitos arcos e
continhas daquelas já ditas e
resgatavam por qualquer cousa em tal
maneira que trouveram dali para as naus
muitos arcos e setas e contas.
E então tornou-se o capitão aquém do
rio e logo acudiram muitos à beira dele. //

Página 13

// Ali veríeis galantes, pintados de preto e
vermelho e quartejados assim pelos
corpos como pelas pernas, que, certo,
pareciam assim bem.
Também andavam entre eles quatro ou
cinco mulheres moças, assim nuas que
não pareciam mal, entre as quais andava
uma com uma coxa, do joelho até o
quadril e a nádega, toda tinta daquela
tintura preta e o resto todo da sua
própria cor. Outra trazia ambos os
joelhos com as curvas assim tintas e
também os colos dos pés. E suas
vergonhas tão nuas e com tanta
inocência descobertas que não havia aí
nenhuma vergonha.
Também andava aí outra mulher moça
com um menino ou menina no colo,
atado com um pano não sei de que aos
peitos, que lhe não apareciam senão as
perninhas, mas as pernas da mãe e o
resto não traziam nenhum pano.
E depois moveu o capitão para cima, ao
longo do rio, que anda sempre a carão
da praia, e ali esperou um velho que
trazia na mão uma pá d'almadia. Falou,
estando o capitão com ele perante todos
nós, sem o nunca ninguém entender
nem ele a nós, quanto a cousas que lhe
homem perguntava d'ouro, que nós
desejávamos saber se o havia na terra.
Trazia este velho o beiço tão furado, que
lhe caberia pelo furado um grão dedo
polegar. E trazia metido no furado uma
pedra verde, ruim, que çarrava por fora
aquele buraco. E o capitão lha fez tirar e
ele não sei que diabo falava e ia com ela
para a boca do capitão para lha meter.
Estivemos sobre isso um pouco rindo e
então enfadou-se o capitão e deixou-o. E
um dos nossos deu-lhe pela pedra um
sombreiro velho, não por ela valer
alguma cousa, mas por mostra. E
despois a houve o capitão, creio para
com as outras cou- //

Página 14

// -sas a mandar a Vossa Alteza.
Andámos por i vendo a ribeira, a qual é
de muita água e muito boa. Ao longo
dela há muitas palmas não muito altas,
em que há muito bons palmitos.
Colhemos e comemos deles muitos.
Então tornou-se o capitão para baixo,
para a boca do rio, onde
desembarcámos.
E além do rio andavam muitos deles,
dançando e folgando uns ante outros,
sem se tomarem pelas mãos, e faziamno
bem. Passou-se então além do rio
Diego Diis, almoxarife que foi de
Sacavém, que é homem gracioso e de
prazer, e levou consigo um gaiteiro
nosso, com sua gaita, e meteu-se com
eles a dançar, tomando-os pelas mãos.
E eles folgavam e riam e andavam com
ele muito bem, ao som da gaita. Despois
de dançarem, fez-lhes ali, andando no
chão, muitas voltas ligeiras e salto real,
de que se eles espantavam e riam e
folgavam muito. E, conquanto os com
aquilo muito segurou e afagou, tomavam
logo uma esquiveza como monteses. E
foram-se para cima.
E então o capitão passou o rio com
todos nós outros e fomos pela praia, de
longo, indo os batéis assim a carão de
terra. É fomos até uma lagoa grande
d'água doce, que está junto com a praia,
porque toda aquela ribeiro do mar é
apaulada por cima e sai água por muitos
lugares.
E, depois de passarmos o rio, foram uns
sete ou oito deles andar entre os
marinheiros, que se recolhiam aos
batéis. E levaram dali um tubarão que
Bertolameu Diis matou e levava-lho e
lançou-o na praia.
Abasta que até aqui, como quer que se
eles em alguma parte amansassem, logo
duma mão para a outra se esquivavam, //

Página 15

// como pardais de cevadoiro; e homem
não lhes ousa falar de rijo por se mais
não esquivarem. E tudo se passa como
eles querem por os bem amansar. Ao
velho, com que o capitão falou, deu uma
carapuça vermelha e com toda a fala,
que com ele passou, e com a carapuça,
que lhe deu, tanto que se espediu, que
começou de passar o rio, foi-se logo
recatando e não quis mais tornar do rio
para aquém. Os outros dous, que o
capitão teve nas naus, a que deu o que
já dito é, nunca aqui mais apareceram,
do que tiro ser gente bestial e de pouco
saber e por isso são assim esquivos.
Eles, porém, com tudo, andam muito
bem curados e muito limpos e naquilo
me parece ainda mais que são como
aves ou alimárias monteses que lhes faz
o ar melhor pena e melhor cabelo que às
mansas, porque os corpos seus são tão
limpos e tão gordos e tão formosos, que
não pode mais ser. E isto me faz
presumir que não têm casas nem
moradas em que se acolham. E o ar, a
que se criam, os faz tais. Nem nós ainda
até agora não vimos nenhumas casas
nem maneira delas.
Mandou o capitão àquele degradado
Afonso Ribeiro que se fosse outra vez
com eles, o qual se foi e andou lá um
bom pedaço. E à tarde tornou-se, que o
fizeram eles vir e não o quiseram lá
consentir. E deram-lhe arcos e setas e
não lhe tomaram nenhuma cousa do
seu. Antes disse ele que lhe tomara um
deles umas continhas amarelas que ele
levava e fugia com elas e ele se queixou
e os outros foram logo após ele e lhas
tomaram e tornaram-lhas a dar. E então
mandaram-no vir. Disse ele que não vira
lá entre eles senão umas choupaninhas
de rama verde e de fetos muito grandes,
como d'Antre Doiro e Minho.
E assim nos tornámos às naus, já quase
noute, a dormir. //

Página 16

// [Segunda-feira, 27 de Abril] À segundafeira,
depois de comer, saímos todos em
terra a tomar água. Ali vieram então
muitos, mas não tantos como as outras
vezes. E traziam já muito poucos arcos e
estiveram assim um pouco afastados de
nós. E despois, poucos e poucos,
misturaram-se connosco e abraçavamnos
e folgavam e alguns deles se
esquivavam logo.
Ali davam alguns arcos por folhas de
papel e por alguma carapucinha velha e
por qualquer cousa. E em tal maneira se
passou a cousa, que bem vinte ou trinta
pessoas das nossas se foram com eles,
onde muitos deles estavam com moças
e mulheres e trouveram de lá muitos
arcos e barretes de penas d'aves, deles
verdes e deles amarelos, de que creio
que o capitão há-de mandar amostra a
Vossa Alteza. E, segundo diziam esses
que lá foram, folgavam com eles.
Neste dia os vimos de mais perto e mais
à nossa vontade, por andarmos todos
quase misturados, e ali deles andavam
daquelas tinturas quartejados, outros de
metades, outros de tanta feição, como
em panos d'armar, e todos com os
beiços furados e muitos com os ossos
neles e deles sem ossos. Traziam alguns
deles uns ouriços verdes d'arvores que,
na côr, queriam parecer de castanheiros,
senão quanto eram mais e mais
pequenos. E aqueles eram cheios d'uns
grãos vermelhos pequenos, que,
esmagando-os entre os dedos, faziam
tintura muito vermelha, de que eles
andavam tintos. E, quanto se mais
molhavam, tanto mais vermelhos
ficavam. Todos andam rapados até cima
das orelhas e assim as sobrancelhas e
pestanas. Trazem todos as testas, de
fonte a fonte, tintas da tintura preta que
parece uma fita preta, ancha de //

Página 17

// dous dedos.
E o capitão mandou àquele degradado
Afonso Ribeiro e a outros dous
degradados que fossem andar lá entre
eles, e assim a Diego Diis, por ser
homem ledo, com que eles folgavam. E
aos degradados mandou que ficassem lá
esta noute.
Foram-se lá todos e andaram entre eles
e, segundo eles diziam, foram bem uma
légua e meia a uma povoação de casas,
em que haveria nove ou dez casas, as
quais diziam que eram tão compridas
cada uma como esta nau capitana. E
eram de madeira, e das ilhargas, de
tábuas, e cobertas de palha; de razoada
altura e todas em uma só casa, sem
nenhum repartimento. Tinham dentro
muitos esteios e d'esteio a esteio uma
rede, atada pelos cabos em cada esteio,
altas, em que dormiam, e, debaixo, para
se aquentarem, faziam seus fogos. E
tinha cada casa duas portas pequenas,
uma em um cabo e outra no outro. E
diziam que, em cada casa, se acolhiam
trinta ou quarenta pessoas e que assim
os achavam e que lhes davam de comer
daquela vianda que eles tinham, a saber:
muito inhame e outras sementes, que na
terra há, que eles comem.
E, como foi tarde, fizeram-nos logo todos
tornar e não quiseram que lá ficasse
nenhum. E ainda, segundo eles diziam,
queriam-se vir com eles.
Resgataram lá por cascavéis e por
outras cousinhas de pouco valor, que
levavam, papagaios vermelhos muitos
grandes e formosos e dous verdes,
pequeninos, e carapuças de penas
verdes e um pano de penas de muitas
cores, maneira de tecido assás formoso,
segundo Vossa Alteza todas estas
cousas verá, porque o capitão vo-las háde
mandar, segundo ele disse.
E, com isto, vieram. E nós tornámo-nos
às naus. //

Página 18

// [Terça-feira, 28 de Abril] À terça-feira,
depois de comer, fomos em terra dar
guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegámos,
obra de sessenta ou setenta, sem arcos
e sem nada. Tanto que chegámos,
vieram-se logo para nós, sem se
esquivarem. E depois acudiram muitos,
que seriam bem duzentos, todos sem
arcos. E misturaram-se todos tanto
connosco, que nos ajudavam deles a
acarretar lenha e meter nos batéis e
lutavam com os nossos e tomavam
muito prazer.
E, enquanto nós fazíamos a lenha,
faziam dous carpinteiros uma grande
cruz dum pau que se ontem para isso
cortou.
Muitos deles vinham ali estar com os
carpinteiros e creio que o faziam mais
por verem a ferramenta de ferro, com
que a faziam, que por verem a cruz,
porque eles não têm cousa que de ferro
seja e cortam sua madeira e paus com
pedras feitas como cunhas, metidas em
um pau, entre duas talas mui bem
atadas e por tal maneira, que andam
fortes, segundo os homens, que ontem a
suas casas foram, diziam, porque lhas
viram lá.
Era já a conversação deles connosco
tanta, que quase nos torvavam ao que
havíamos de fazer.
E o capitão mandou a dous degradados
e a Diego Diis que fossem lá à aldeia e a
outras, se houvessem delas novas, e
que, em toda maneira, não se viessem a
dormir às naus, ainda que os eles
mandassem. E assim se foram.
Enquanto andávamos nesta mata a
cortar lenha, atravessavam alguns
papagaios, por essas árvores, deles,
verdes, e outros, pardos, grandes e
pequenos, de ma- //

Página 19

// -neira que me parece que haverá nesta
terra muitos, mas eu não veria mais que
até nove ou dez. Outras aves, então, não
vimos; sómente algumas pombas seixas
e pareceram-me maiores, em boa
quantidade, que as de Portugal. Alguns
diziam que viram rolas, mas eu não as
vi, mas, segundo os arvoredos são mui,
muitos e grandes e d'infindas maneiras,
não duvido que por esse sertão haja
muitas aves.
E acerca da noute nos volvemos para as
naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que não dei ainda aqui
conta a Vossa Alteza da feição de seus
arcos e setas. Os arcos são pretos e
compridos e as setas compridas e os
ferros delas de canas aparadas,
segundo Vossa Alteza verá por alguns,
que creio que o capitão a Ela há-de
enviar.
[Quarta-feira, 29 de Abril] À quarta-feira
não fomos em terra, porque o capitão
andou todo o dia no navio dos
mantimentos a despejá-lo e fazer levar
às naus isso que cada uma podia levar.
Eles acudiram à praia muitos, segundo
as naus vimos, que seriam obra de
trezentos, segundo Sancho de Toar, que
lá foi, disse.
Diego Diis e Afonso Ribeiro, o
degradado, a que o capitão ontem
mandou que, em toda maneira, lá
dormissem, volveram-se já de noute, por
eles não quererem que lá dormissem. E
trouveram papagaios verdes e outras
aves pretas, quase como pegas, senão
quanto tinham o bico branco e os rabos
curtos.
E quando se Sancho de Toar recolheu à
nau, queriam-se vir com ele alguns, mas
ele não quis senão dous man- //

Página 20

// -cebos dispostos e homens de prol.
Mandou-os essa noute mui bem pensar
e curar. E comeram toda vianda que lhes
deram. E mandou-lhes fazer cama de
lençóis, segundo ele disse. E dormiram e
folgaram aquela noute.
E assim não foi mais esse dia que para
escrever seja.
[Quinta-feira, 30 de Abril] À quinta-feira,
derradeiro d'Abril, comemos logo quase
pela manhã e fomos em terra por mais
lenha e água. E, em querendo o capitão
sair desta nau, chegou Sancho de Toar
com seus dous hóspedes. E, por ele não
ter ainda comido, puseram-lhe toalhas e
veio-lhe vianda e comeu. Assentaram
cada um dos hóspedes em sua cadeira e
de tudo o que lhes deram comeram mui
bem, especialmente lacão cozido, frio, e
arroz. Não lhes deram vinho, por Sancho
de Toar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no
batel e eles connosco. Deu um grumete
a um deles uma armadura grande de
porco montês, bem revolta e, tanto que a
tomou, meteu-a logo no beiço; e, porque
se lhe não queria ter, deram-lhe uma
pequena de cera vermelha e ele
corregeu-lhe detrás seu adereço para se
ter e meteu-a no beiço assim revolta
para cima. E vinha tão contente com ela,
como se tivera uma grande jóia. E, tanto
que saímos em terra, foi-se logo com
ela, que não apareceu aí mais.
Andariam na praia, quando saímos, oito
ou dez deles e daí a pouco começaram
de vir; e parece-me que viriam, este dia,
à praia quatrocentos ou quatrocentos e
cinquenta. Traziam alguns deles arcos e
setas e todos os deram por carapuças e
por qualquer cousa que lhes davam.
Comiam connosco do que lhes dávamos
e bebiam alguns deles vinho e outros o
não podiam beber, mas parece-me que,
se lho ave- //

Página 21

// -zarem, que o beberão de boa
vontade. Andavam todos tão dispostos e
tão bem feitos e galantes com suas
tinturas, que pareciam bem. Acarretavam
dessa lenha quanta podiam, com mui
boas vontades, e levavam-na aos batéis.
E andavam já mais mansos e seguros
entre nós do que nós andávamos entre
eles.
Foi o capitão com alguns de nós um
pedaço por este arvoredo até uma ribeira
grande e de muita água que, a nosso
parecer, era esta mesma que vem ter à
praia em que nós tomámos água. Ali
ficámos um pedaço bebendo e folgando
ao longo dela, entre esse arvoredo, que
é tanto e tamanho e tão basto e de
tantas prumagens, que lhe não pode
homem dar conto. Há entre ele muitas
palmas de que colhemos muitos e bons
palmitos.
Quando saímos do batel, disse o capitão
que seria bom irmos direitos à cruz, que
estava encontada a uma árvore, junto
com o rio, para se pôr de manhã, que é
sexta-feira, e que nos puséssemos todos
em joelhos e a beijássemos, para eles
verem o acatamento que lhe tínhamos. E
assim o fizemos. E esses dez ou doze,
que aí estavam, acenaram-lhes que
fizessem assim e foram logo todos beijála.
Parece-me gente de tal inocência que,
se os homem entendesse e eles a nós,
que seriam logo cristãos, porque eles
não têm nem entendem em nenhuma
crença, segundo parece. E, portanto, se
os degradados que aqui hão-de ficar
aprenderem bem a sua fala e os
entenderem, não duvido, segundo a
santa tenção de Vossa Alteza, fazeremse
cristãos e crerem na nossa santa fé, à
qual praza a Nosso Senhor que os traga,
porque, certo, esta gente é boa e de boa
simplicidade e imprimir-se-à ligeiramente
neles qualquer cu- //

Página 22

// nho que lhes quiserem dar. E logo lhes
Nosso Senhor deu bons corpos e bons
rostos, como a bons homens e ele, que
nos por aqui trouve, creio que não foi
sem causa. E, portanto, Vossa Alteza,
pois tanto deseja acrescentar na santa fé
católica, deve entender em sua
salvação; e prazerá a Deus que, com
pouco trabalho, será assim.
Eles não lavram, nem criam, nem há
aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem
ovelha, nem galinha, nem outra
nenhuma alimária, que costumada seja
ao viver dos homens; nem comem senão
desse inhame que aqui há muito e dessa
semente e fruitos que a terra e as
árvores de si lançam. E com isto andam
tais e tão rijos e tão nédios, que o não
somos nós tanto com quanto trigo e
legumes comemos.
Enquanto ali, este dia, andaram, sempre
ao som dum tamborim nosso dançaram
e bailharam com os nossos, em maneira
que são muito mais nossos amigos que
nós seus.
Se lhes homem acenava se queriam vir
às naus, faziam-se logo prestes para
isso em tal maneira que, se os homem
todos quisera convidar, todos vieram.
Porém não trouvemos esta noute às
naus senão quatro ou cinco, a saber: o
capitão-mor, dous, e Simão de Miranda,
um, que trazia já por pajem, e Aires
Gomes, outro, assim pajem.
Os que o capitão trouve era um deles um
dos seus hóspedes que à primeira,
quando aqui chegámos, lhe trouveram, o
qual veio hoje aqui vestido na sua
camisa, e com ele um seu irmão, os
quais foram esta noute mui bem
agasalhados assim de vianda como de
cama de colchões e lençóis por os mais
amansar.
[Sexta-feira, 1 de Maio] E hoje, que é
sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela
manhã, saímos em terra com nossa
bandeira e fomos desembarcar acima do
rio, contra o sul, //

Página 23

// onde nos pareceu que seria melhor
chantar a cruz para ser melhor vista. E
ali assinou o capitão onde fizessem a
cova para a chantar. E, enquanto a
ficaram fazendo, ele com todos nós
outros fomos pela cruz, abaixo do rio,
onde ela estava. Trouvemo-la dali com
esses religiosos e sacerdotes diante,
cantando, maneira de procissão.
Eram já aí alguns deles, obra de setenta
ou oitenta, e, quando nos assim viram
vir, alguns deles se foram meter debaixo
dela a ajudar-nos.
Passámos o rio ao longo da praia e fomo-
la pôr onde havia de ser, que será do
rio obra de dous tiros de besta. Ali
andando nisto, viriam bem cento
cinquenta ou mais.
Chantada a cruz com as armas e divisa
de Vossa Alteza, que lhe primeiro
pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali
disse missa o padre frei Anrique, a qual
foi cantada e oficiada por esses já ditos.
Ali estiveram connosco a ela obra de
cinquenta ou sessenta deles, assentados
todos em joelhos, assim como nós. E,
quando veio ao Evangelho, que nos
erguemos todos em pé, com as mãos
levantadas, eles se levantaram connosco
e alçaram as mãos, estando assim até
ser acabado. E então tornaram-se a
assentar como nós. E, quando
levantaram a Deus, que nos pusemos
em joelhos, eles se puseram todos assim
como nós estávamos, com as mãos
levantadas e em tal maneira
assossegados, que certifico a Vossa
Alteza que nos fez muita devoção.
Estiveram assim connosco até acabada
a comunhão. E, depois da comunhão,
comungaram esses religiosos e
sacerdotes e o capitão com alguns de
nós outros.
Alguns deles, por o sol ser grande, em
nós estando comungando, alevantaramse,//

Página 24

// e outros estiveram e ficaram. Um
deles, homem de cinquenta ou cinquenta
e cinco anos, ficou ali com aqueles que
ficaram. Aquele, em nós assim estando,
ajuntava aqueles que ali ficaram e ainda
chamava outros. Este, andando assim
entre eles, falando-lhes, acenou com o
dedo para o altar e depois mostrou o
dedo para o céu, como que lhes dizia
alguma cousa de bem; e nós assim o
tomámos.
Acabada a missa, tirou o padre a
vestimenta de cima e ficou na alva. E
assim se subiu, junto com o altar, em
uma cadeira e ali nos pregou do
Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje
é, tratando, em fim, da pregação deste
vosso prosseguimento tão santo e
virtuoso, que nos causou mais devoção.
Esses, que à pregação sempre
estiveram, estavam, assim como nós,
olhando para ele. E aquele, que digo,
chamava alguns, que viessem para ali.
Alguns vinham e outros iam-se. E,
acabada a pregação, trazia Nicolau
Coelho muitas cruzes d'estanho com
crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra
vinda. E houveram por bem que
lançassem a cada um sua ao pescoço,
pela qual cousa se assentou o padre frei
Anrique ao pé da cruz e ali, a um e um,
lançava sua, atada em um fio ao
pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e
alevantar as mãos. Vinham a isso muitos
e lançaram-nas todas, que seriam obra
de quarenta ou cinquenta.
E isto acabado, era já bem uma hora
depois de meio dia, viemos às naus a
comer, onde o capitão trouve consigo
aquele mesmo que fez aos outros aquela
mostrança para o altar e para o céu e um
seu irmão com ele, ao qual fez muita //

Página 25

// honra, e deu-lhe uma camisa mourisca
e ao outro uma camisa destoutras.
E, segundo o que a mim e a todos
pareceu, esta gente não lhes falece
outra cousa para ser toda cristã que
entenderem-nos, porque assim tomavam
aquilo que nos viam fazer, como nós
mesmos, por onde pareceu a todos que
nenhuma idolatria nem adoração têm. E
bem creio que, se Vossa Alteza aqui
mandar quem mais entre eles de vagar
ande, que todos serão tornados ao
desejo de Vossa Alteza. E para isso se
alguém vier, não deixe logo de vir clérigo
para os baptizar, porque já então terão
mais conhecimento de nossa fé pelos
dous degradados que aqui entre eles
ficam, os quais ambos hoje também
comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram não
veio mais que uma mulher moça, a qual
esteve sempre à missa, à qual deram um
pano com que se cobrisse e puseram-lho
darredor de si. Mas ao assentar não
fazia memória de o muito estender para
se cobrir. Assim, Senhor, que a
inocência desta gente é tal, que a d'Adão
não seria mais quant'a em vergonha. Ora
veja Vossa Alteza quem em tal inocência
vive, ensinando-lhes o que para sua
salvação pertence, se se converterão ou
não.
Acabado isto, fomos assim perante eles
beijar a cruz e espedimo-nos e viemos
comer.
Creio, Senhor, que com estes dous
degradados, que aqui ficam, ficam mais
dous grumetes, que esta noute se
saíram desta nau, no esquife, em terra
fugidos, os quais não vieram mais. E
cremos que ficarão aqui, porque de
manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui
nossa partida. //

Página 26

// Esta terra, Senhor, me parece que da
ponta que mais contra o sul vimos até
outra ponta que contra o norte vem, de
que nós deste porto houvemos vista,
será tamanha, que haverá nela bem
vinte ou vinte cinco léguas por costa.
Traz ao longo do mar, em algumas
partes, grandes barreiras, delas
vermelhas e delas brancas, e a terra, por
cima, toda chã e muito cheia de grandes
arvoredos. De ponta a ponta é toda praia
parma, muito chã e muito formosa; pelo
sertão nos pareceu do mar muito grande,
porque, a estender olhos, não podíamos
ver senão a terra e arvoredos, que nos
parecia mui longa terra.
Nela até agora não pudemos saber que
haja ouro, nem prata, nem nenhuma
cousa de metal, nem de ferro; nem lho
vimos. A terra, porém, em si, é de muito
bons ares, assim frios e temperados
como os d'Antre Doiro e Minho, porque
neste tempo d'agora assim os
achávamos como os de lá. Águas são
muitas, infindas. E em tal maneira é
graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-à nela tudo por bem das águas
que tem. Mas o melhor fruito que nela se
pode fazer me parece que será salvar
esta gente. E esta deve ser a principal
semente que Vossa Alteza em ela deve
lançar. E que aí não houvesse mais que
ter aqui esta pousada para esta
navegação de Calecute, bastaria, quanto
mais disposição para se nela cumprir e
fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a
saber, acrescentamento de nossa santa
fé.
E neste maneira, Senhor, dou aqui a
Vossa Alteza //

Página 27

// conta do que nesta vossa terra vi. E,
se a algum pouco alonguei, Ela me
perdôe, que o desejo que tinha de vos
tudo dizer mo fez assim assim pôr pelo
miúdo.
E, pois que, Senhor, é certo que assim
neste cargo que levo, como em outra
qualquer cousa que de vosso serviço for,
Vossa Alteza há-de ser de mim muito
bem servida, a Ela peço que, por me
fazer singular mercê, mande vir da ilha
de S. Tomé Jorge d'Osoiro, meu genro, o
que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da vossa ilha da
Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia
de Maio de 1500.
Pêro Vaz de Caminha

Página 28

Originalmente esta página estava em branco, mas este texto foi adicionado posteriormente em função da catalogação

Carta de Pedro vaz caminha sobre
o descobrimento da Terra nova
q[ue] fez Pedro Alves. Feita na Ilha de
Vera Cruz em o 1.º de Maio de
1500
pd uaaz de camjnha
Carta de pº Vaaz
decaminhadodesco
brime[n]to datrra
noua q[ue] fez pº Alvarez
A El Rey noso Sñor
Gaveta 8.ª
Maço 2.º-N.º 8
Aqui esta junta huma Copia para
milhor inteligencia deste original
Transcripto do L. 13 da Reforma
dos Documentos das Gavetas a f. 43

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