quinta-feira, 20 de maio de 2010

Conversa de Menina

Com este conto participei do 1º Desafio Literário de Ficção Científica baseado em imagens do http://contosfantasticos.com.br.

- Oi Seu Robô, eu sou a Gabizinha e este é o Tuti, meu ursinho e meu melhor amiguinho! – Gabi sempre aplicava muita ênfase nos pronomes possessivos que eram exageradamente utilizados. Adorava ultrapassar a cota diária do uso dos diminutivos. Agora, em frente a seu novo presente de aniversário, exibia um grande sorriso amarelo enquanto seu pequeno braço levantava o urso de pelúcia para que o robô pudesse ver melhor.

O robô de cócoras em frente à Gabi, com suas duas mãos reforçando seu apoio em uma posição aracnídea, observava a menina e o urso. Era na prática o primeiro encontro entre os dois, visto que no dia anterior, durante a festa de aniversário, seu único interesse era brincar com as amigas e amigos. A superfície cinza fosco do corpo robótico seria um contraste com o azul do céu três dias antes, mas agora era apenas mais uma gradação cromática da fumaça que gradativamente acinzentava o horizonte. – Eu sou PVB-2004, unidade robótica de utilização doméstica com designação infanto protetora. – Sua voz metálica e inexpressiva fez com que o sorriso da menina deixasse de existir.

- Que nome mais feio Seu Robô, - Comentou indignada – e que jeitinho esquisitinho de falar. Vamos entrar. O cheiro desta fumacinha está muito ruim. – Virou rapidamente seguindo para a porta de entrada e pode escutar o robô a seguindo de perto. 

Poucos minutos atrás seus pais a aconselhavam antes de partirem para o trabalho:

- Seja uma boa garota e brinque com seu novo amigo. Ele vai cuidar muito bem de você. – Mesmo querendo transmitir confiança, a voz da mãe escondia uma preocupação inerente ao papel materno.

- Mas e a Dona Júlia? Ela não vem mais? Eu estou com medo mamãe.

- Já conversamos sobre isso filha. – Seu pai, um homem austero e rigidamente disciplinado e disciplinador, mentia de forma amorosa ao repetir o paradeiro da babá. – Ela teve que se mudar para um lugar muito longe e pode ter certeza que está com muitas saudades de você. – Apreensivamente olhou de soslaio para a esposa e percebeu que ela mordia com força o lábio inferior. – E não tenha medo minha patinha. Seu robô amigo vai te proteger e ser uma boa companhia.

Havia transcorrido apenas três dias desde o atentando ao centro da megalópole São Paulo, onde dezenas de prédios foram danificados por bombas. Nenhum grupo havia assumido o atentado mas as autoridades desconfiavam de uma aliança partidária anti-governamental. Milhares morreram, e Júlia era uma delas. 

Ao fechar a porta, após a entrada do robô, Gabi pode sentir o agradável ar condicionado com uma leve fragrância de morango que a fez soltar um gemido de prazer. O espesso carpete vermelho escuro fazia com que os passos do robô fossem abafados enquanto acompanhava a menina até seu quarto. 

Chegando à porta rosa, quase no final do corredor, Gabi parou subitamente:

- Já sei Seu Robô! – Sua voz transmitia uma euforia infantil tremenda. – Você agora vai se chamar Obada.

- Creio que Obada é uma designação nada convencional para...

- Você sabia, Obada, que meus papais me acham muito especial? – Perguntou, ignorando completamente o comentário do robô.

Com nenhum tato psicológico Obada complementa: - É inerente à natureza da maternidade e paternidade o afeto com relação aos descendentes.

- Credo Obada, não entendo uma palavrinha do que você fala. Sou especial porque nasci no dia 22 de fevereiro de 2222. Viu? 22 do 2 de 2222. Um monte de patinhos. – Terminou a frase enquanto, com o indicador, escrevia no ar sete números dois em um quadro imaginário. – Por isso meu papai me chama de patinha. Entendeu?

- Não. – Disse o robô, e se pudesse expressar, sua cilíndrica face exibiria um vazio interrogativo. – Não consigo fazer uma correlação entre sua data de nascimento com o animal chamado pato, que é uma ave que pertence a família Anseridae na qual estão inseridas as sub-famílias Dendrocygninae, Anatinae, Merginae ou Oxyurinae originária da América do Sul.

Crianças de quatro anos, geralmente em uma conversa, mudam de assunto rápida e inesperadamente. Com Gabi não era diferente.

- Sabia que ontem meu amiguinho Vinícius vomitou? – Despreocupadamente comentava o ocorrido enquanto abria a porta do quarto. – É verdade. É que ele comeu 5 pedacinhos bem grandes do meu bolinho de aniversário. – Jogou o Tuti e a si mesmo na cama. 

A câmera frontal da cabeça de Obada se movia rapidamente para acompanhar os movimentos da menina que repetidamente pulava na cama. Ela continuou o relato durante os pulos:

– Aí ele ficou pulando que nem doido e ... BLRÁÁÁ ... vomitou. – Continuava pulando enquanto tentava dar um giro de 360 graus.

O quarto era muito confortável e tipicamente “de menina”. As cores começavam com o branco neve até um rosa extremamente forte, passando por quase todas as tonalidades de rosa. O aroma ali era um pouco diferente do resto da casa. Uma leve mistura de essência de amora com framboesa fazia com que o olfato acentuasse o sentido visual, parecendo que a cor rosa das paredes e mobílias possuíssem um cheiro que as tornavam comestíveis. Cada objeto do quarto foi cuidadosamente escolhido pela mãe para propiciar à filha um ambiente afetuoso e acolhedor.

- Acho melhor você parar de pular antes que possa vir a se machucar.

- Que nada Obada! – Agora que já havia se habituado, cada pulo era acompanhado de uma completa volta em torno de si. – Sou campeã de pulos e viradas... IURRÚÚÚ!

Obada cuidadosa e carinhosamente segurou Gabi, colocando-a sentada na beira da cama. 

Com uma expressão muito irritada, resmunga:

- Como você é chatinho Obada. Até parece meu papai. – Virou-se à procura do Tuti. 

- É minha tarefa zelar por sua segurança, bem-estar e conforto.

Gabi, agora com seu urso de pelúcia no colo, olhava atentamente para os seis tentáculos verdes que saíam por trás das costas de Obada
.
- Pra quê estes bracinhos esquisitinhos atrás de você? – Olhava atentamente para um monitor na extremidade de um dos tentáculos, o qual exibia a imagem de uma linda menina com rosto redondo, longos cabelos dourados dispostos simetricamente ao estilo “Maria Chiquinha”. Vendo sua própria imagem na tela, e enquanto Obada respondia sua pergunta, iniciou uma série de caretas.

- Estes tentáculos são extensores sensoriais. Além de minha câmera visual em minha cabeça, outras estão localizadas em três tentáculos distintos. Assim posso ver em qualquer direção sem que meu corpo precise se mover. Este serve para detecção sonora e os outros dois são terminais visuais. – Parou por um instante e após ter analisado as diferentes expressões faciais, perguntou: 

- Por que seu rosto está periodicamente mudando de forma com a contração e relaxamento dos seus músculos faciais? Está passando mal Gabi?

Enquanto experimentava uma nova careta ao tentar colocar a língua no nariz, ao mesmo tempo arregalando totalmente os olhos, disse: - Me chame de patinha! É mais bonitinho.

A próxima careta exigia a ajuda das mãos. Com a boca aberta e a língua para fora, usou os dois dedos médios para puxar a boca para os lados e os indicadores forçava para baixo as pálpebras inferiores. – Gosta das minhas caretas?

Obada percebendo que a menina era incentivada com sua própria imagem, desligou os monitores.

- Seu chato! – Ficando com a cara amarrada, agarrou o Tuti.

- É para seu próprio bem. Não quero que tenha um efeito doloroso com uma eventual distensão muscular facial.

- Você sabe o que é um amigo, Obada? – Perguntou olhando afetuosamente para o Tuti em seus pequenos e frágeis braços.

- Por definição, amigo é uma pessoa a quem se está ligado por uma afeição recíproca.

- Você é bobinho mesmo “né” Obada? – Olhou seriamente para o robô. – É claro que não é isto. Minha mamãe me ensinou que amigos são aqueles que trocam seus corações. Você sabe o que é um coração, não sabe?

- Coração é o órgão central da circulação, localizado na caixa torácica, levemente inclinado para esquerda e para baixo. É constituído por uma massa contrátil, o miocárdio, revestido interiormente por uma membrana fina, o endocárdio, e envolvido por um saco fibro-seroso, o pericárdio.

Houve cerca de 15 segundos de silêncio antes da gargalhada aguda e contagiante de Gabi.

- Apesar de não entender nadinha de nadinha do que você fala, eu gosto de você Obada. - Pegou o pequeno urso e após um abraço apertado, sua face irradiou ternura. – Sabe porque o Tuti é meu melhor amiguinho?

- Não. – Respondeu o robô.

- É porque trocamos nossos “coraçõeszinhos”. Eu dei o meu pra ele e ele deu o dele pra mim. – Sua simples explicação infantil fez com que aumentasse o tempo de processamento do raciocínio lógico do robô.

- Creio que sua explicação sobre amizade é incoerente. Um urso de pelúcia não possui coração e sim um enchimento de espuma. Como você está viva neste momento não pode ter entregue seu coração, ou estaria morta. Além do mais...

- Chega! – gritou Gabi – Você quer ou não quer ser meu amigo? 

- Acredito que com relação à troca de corações...

- Ótimo! – Deu um pulo da cama. – Seremos amiguinhos pra sempre! – Gabi animadamente puxava Obada pela mão. – Vem cá que eu vou te mostrar uma coisa. – Seguiram caminhando pela casa.

A ampla e imponente casa, situada na rica periferia de São Paulo, não sofreu diretamente com os atentados, apenas possuía uma triste localização que permitia ver ao longe a silhueta de uma cidade alvejada. 

A dupla chegou a um grande salão que adentraram após o sistema de segurança destrancar a porta, validado pelo reconhecimento facial de Gabi. Assim que entraram as luzes iluminaram o que se assemelhava a um museu. O pai colecionava objetos antigos, principalmente os datados da primeira metade do século XXI. As relíquias eram dispostas em pedestais, individualmente protegidas por uma caixa de vidro. O ambiente possuía climatização controlada. A temperatura, umidade, quantidade de luz e resíduos do ar eram meticulosamente mantidos estáveis para que as preciosidades ali mantidas não fossem deterioradas. 

- Aqui está o tesouro do meu papai. – Disse enquanto abria os braços para apresentar de forma mais dramática o local. – Ele junta coisas velhas, e odeia quando eu falo assim. – Soltou uma risadinha marota e imitou o pai ao engrossar um pouco a voz. – Eu não junto coisas velhas minha patinha, eu coleciono objetos antigos.

Ficou cabisbaixa e sussurrou: - Acho que meu papai gosta mais disto tudinho do que de mim.

Obada, que até agora apenas observava, tentou animar Gabi. – Pelo que possuo em minha memória com relação ao relacionamento de pais e filhos, percebo que seu pai gosta muito mais de você.

- Se ele gostasse mais de mim passaria mais tempinho comigo e não com este monte de coisas velhas. Vem cá! – Puxou a mão do robô. – quero te mostrar outro lugar.

Gabi puxava com força o robô pelo mesmo caminho que levava a seu próprio quarto. Queria agora mostrar seu outro concorrente. Passaram pela porta rosa e, no final do largo corredor, pararam em frente a uma porta dupla, de madeira maciça com detalhes esmeradamente entalhados em forma de Flor-de-Liz. Com um leve girar da maçaneta dourada a porta pode ser aberta sem muito esforço. Como era puxado com força, e mesmo com suas quatro câmeras, Obada não pode perceber os detalhes do estilo neo-pós-moderno da decoração do quarto ao ser colocado de frente a uma penteadeira.

– Está vendo isto? – Gabi apontava para a mobília com uma expressão séria.

- Sim. É uma mobília onde principalmente as mulheres, utilizando um espelho holográfico, se...

- Isto é o Deus de minha mamãe. – Novamente Gabi abaixava a cabeça com tristeza. – Acho que ela gosta mais disto do que de mim. Mas deixa pra lá, né? Vamos pra cozinha comer... tô com uma baita fominha. – Novamente saiu puxando Obada com uma mão e segurando firme, mas carinhosamente, o Tuti.

Obada não entendia o porquê mas, desde que começou seu relacionamento com Gabi, sua capacidade de processamento diminuiu e o tempo de resposta para os cálculos que geravam suas ações, aumentou. Toda a lógica inserida em sua programação entrava em conflito com os argumentos da garota. Muitas decisões lógicas a serem tomadas de forma rápida eram agora retardadas por alguma variável desconhecida, imposta às fórmulas dos processadores quânticos de inteligência artificial por uma simples conversa de menina.

Sentada à mesa, comendo alguns biscoitos salgados e bebendo um gelado suco de uva, Gabi ainda pensava sobre seus concorrentes. – Sabe Obada... – Tomou um grande gole de suco que deixou um “bigode” roxo em seu rosto. – Eu queria ser a sala de coisas velhas de meu papai em um dia, e no outro dia ser a penteadeira de minha mamãe. – Um arroto espontâneo a fez corar.

- Mas isto não é possível. Um objeto inanimado como...

- Assim poderia ter toda a atenção deles. E também tenho saudades da Júlia. – Abraçou o Tuti ao mesmo tempo que suspirou saudosamente.

A cozinha era feita totalmente em aço inox, e os diversos reflexos dos dois aumentava a sensação de presença no ambiente. Vários Obadas e Gabis distorcidos eram o reflexo de uma triste realidade na vida da Gabi real.

- Então Obada, você ainda não me respondeu. – Gabi colocava os dois cotovelos na mesa apoiando a cabeça nas mãos. – Vai ser meu amiguinho?

- Tendo como base sua explicação sobre amizade, não posso ser seu amigo.

O mundo pareceu desabar para Gabi. Sua respiração tornou-se ofegante. Começou a tremer espasmodicamente. Os olhos avermelharam-se. De repente sua decepção jorrou em forma de choro e gritos desesperados. Os soluços a faziam engasgar. Sua pálida face estava agora rosa como seu quarto.

A capacidade de processamento de Obada pareceu congelar. Os conflitos impostos às equações impediam uma determinante decisiva. Amizade convencional é diferente da amizade Gabi. Gabi com amizade convencional é infeliz que ao mesmo tempo é igual a Gabi sem amizade Gabi. Gabi triste é falha na execução do objetivo principal da unidade PVB-2004. Gabi igual patinha. Obada... Lúcia... Tuti... vômito... coleção... penteadeira... co – ra – cão...

Enquanto soluçava Gabi pode ouvir uma voz diferente saindo de Obada. Uma voz ruidosa. Pausada. Falha. Talvez sofrida:

- Se-rei... se-se-se-u... a-mi... mi... go...

Num sobressalto de alegria Gabi abraçou Obada gritando:

- Obaaaaaaaaaaaaa! – O copo vazio caiu lentamente e Obada o viu quebrar em oitocentos e trinta e dois pedaços. Alguns grandes e outros invisíveis para uma pessoa.

No final do dia, ao retornarem do trabalho, os pais de Gabi entram na casa sentindo um cheiro diferente. Um cheiro forte e orgânico.

- Patinha, chegamos. – Gritou o pai, estranhando por ela não estar esperando junto à porta. Talvez estivesse se divertindo com o robô, mas esta hipótese seria descartada em breve.

Logo ouviram uma voz metálica vindo da cozinha. Ao se aproximarem entenderam que o robô repetia pausadamente a palavra amigo. Quando entraram na cozinha um calafrio percorreu a espinha do casal. Podiam ver os pequenos pés da Gabi caída atrás da mesa. Viram um líquido escuro no chão que erroneamente associaram ao copo caído e à garrafa de suco de uva em cima da mesa. Seus piores temores se tornaram realidade quando viram o robô com um buraco no peito. Metal retorcido.

O robô paralisado, segurava em uma das mãos um dispositivo mecânico e na outra um pequeno coração pingando sangue.

3 comentários:

  1. Muito bom!!!!
    Não gosto das partes nas histórias onde crianças morrem... mas, assim é (ou será) a vida...
    Temos que aceitar!
    Parabéns!

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  2. Nossa, eu estava prevendo o final... mas não estava realmente acreditando que seria esse. Muito bom texto (y)

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    1. Obrigado. Este foi meu primeiro texto, desde que resolvi escrever em 2010

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